“12 Anos de Escravidão” é um filme o qual não dá, mesmo enquanto crítico de cinema, para ficar na mera análise cinematográfica. Além de objeto de arte, é um manifesto, um evento social, algo a ser discutido, refletido e disseminado. Na saída da sessão escutei uma senhora dizer à amiga: – “Forte, né?”. O diretor Steve McQueen (sem relação com o famoso ator), que demonstrara talento em “Shame” (2011), realmente filmou cenas que chocam. Mas não é o choque pelo choque. Cada momento forte tem motivo para estar ali.
E, qualidades cinematográficas à parte – e são tantas, do roteiro às interpretações intensas, passando pela primorosa reconstituição de época, a trilha sonora que se alia à história e colabora para que fiquemos ora aflitos, ora sensibilizados, e a direção segura -, o primeiro sentimento que veio ao assistir o longa foi de vergonha. Vergonha por que tantos de nossos antepassados agiram de tal forma, brutal, impiedosa, mau caráter. Vergonha por que ainda há coleguinhas que se acham superiores e ainda pensam de tal maneira.
Se já foram tantos e tantos filmes sobre o holocausto (e importantes, diga-se), é preciso que sejam realizados muitos mais longas sobre a escravidão, a matança de negros, índios e os tantos e tantos holocaustos que já tivemos ao longo da história.
“12 Anos de Escravidão” é cru em esfregar na cara do espectador o sangue, os cortes e cicatrizes das vítimas. E belo pela coragem, pelo recado dado, por contrapor a beleza e a intensidade dos corpos negros – mesmos feridos – à palidez dos patrões brancos que os maltratavam. Porém, se engana quem acha que o filme toma partido a partir da raça, Não. A trama apresenta personagens dignos e corruptos, covardes e corajosos, de ambos os lados. Justamente para deixar a seguinte mensagem: caráter não tem cor, raça, país. É um registro histórico. Sua essência, no entanto, condiz com o mundo contemporâneo e serve de alerta: o preconceito continua, menos escancarado, mas segue. E devemos ter cuidado, por que há quem continue pregando-o.
Contribui bastante para o êxito o excelente time de atores: de Chiwetel Ejiofor, em grande jornada, Michael Fassbender (de “Shame”), sempre eficaz, a jovem Lupita Nyong’o (espetacular), Benedict Cumberbatch (em bela temporada, logo após ter atuado – e bem – em “Além da Escuridão – Star Trek” e “Álbum de Família”) aos coadjuvantes (inclusive Brad Pitt). São todos ótimos. Não à toa os três primeiros da lista foram indicados ao Oscar, respectivamente para Ator, e Ator e Atriz Coadjuvante. Também colabora para o sucesso internacional o momento histórico dos Estados Unidos, presididido por um afro-americano (expressão que eles adoram).
Recentemente, outro longa importante chegou direto ao mercado de home vídeo no Brasil, “O Grande Desafio”, de Denzel Washington, sobre a primeira escola de negros a vencer a poderosa Harvard da elite branca. Pena que aquele filme passou rapidamente pelos cinemas norte-americanos e não chamou tanto a atenção do público. Com “12 Anos de Escravidão”, justiça é feita ao tema. Resta esperar pela justiça na vida real.
Como reparar as injustiças contra negros, mulheres, gays, etc? Difícil, talvez impossível. Podemos agir é agora. E os produtores deste filme agiram e estão de parabéns. Quero ver cada vez mais filmes assim. Aliás, a temporada do Oscar 2014 nos presenteia com histórias que colocam o(s) dedo(s) na(s) ferida(s). Também quero mais filmes como “A Menina que Roubava Livros”, que mostra uma outra realidade, da
Segunda Guerra, dos alemães que não eram judeus e também sentiram na carne e no sangue os absurdos de Hitler. Ou como “Philomena”, que retrata os absurdos dos bastidores da Igreja Católica (e que vale para outras religiões), das freiras frustradas sexualmente que maltratavam as jovens e roubavam-lhe os filhos e os doavam contra a vontade das mães biológicas.
O mérito desses trabalhos é instigar em nós o desejo por justiça, a vergonha de uma humanidade tão dividida. Divisão essa que nos faz escrever sobre brancos e negros, quando deveríamos escrever simplesmente sobre seres humanos. Quero ver cada vez mais políticos, prefeitos, presidentes, diretores de empresas, professores, médicos etc negros, índios, gays, mulheres, etc, etc. Quero ver cada vez mais filhos indo contra as ideias reacionárias de pais e mães que acham que os filhos e filhas só podem casar com pessoas da mesma religião, da mesma crença, do mesmo país, ou seja o que for – isso também é exclusão, é preconceito, é crime tão grave quanto os cometidos por Hitler e outros. Quero ver cada vez mais a mistura, a miscigenação. E que os hipócritas engulam tudo isso. Precisamos de mais filmes e artistas assim.
Deu vontade até de ressuscitar um poema que fiz em 2008 para um livro que lancei com minha mãe, Regina:
Entre a Inércia e a Embriaguez
O preconceito é o temor da diferença
A covardia por excelência
A ridicularização de quem se olha no espelho
E não suporta o que acabou de olhar
É a ausência de bons sentimentos
A inércia de pensamentos
A embriaguez de quem se acha certo
Mas está incerto sobre o que deve tentar
O preconceito é um despeito
A droga mais pesada para um usuário
Que pensa ser inteligente, mas não passa de um otário
Que no fundo é carente, triste, uma pena aos olhos de quem sabe amar
Pergunto-me como pode alguém pensar que é superior
Seja por grana, raça, território, etnia, religião, cor…
Achar que duas pessoas só podem se amar se forem “iguais”
Quando o que mais cativa e abraça a alma, são as diferenças, e principalmente, sentimentos imortais
Ser humano é humano e ponto final
Independente de origem, credo, casta, raça, posição social
É virtude, razão natural e a prova de que o desigual é o igual, o legal
Então tento não julgar o que não está pré-estabelecido
Pois no mundo não existe quem deva ditar os passos alheios
Pois são iguais pardos, brancos, amarelos, mulatos, morenos
Gays, heterossexuais, mendigos, prostitutas, cristãos, ateus, loucos, serenos
Parabéns, André Azenha, por esse belo texto (e pelo poema) de um filme importante e necessário em tempos que a cor da pele e a religião para alguns ainda, infelizmente, são motivo de atos de violência e preconceito. Ano passado, tivemos um ótimo filme que também tratava de escravidão “Django Livre”, de Quentin Tarantino. O cineasta Spike Lee o criticou dizendo que “a história dos meus irmãos não foi um western spaghetti”. Então, me pergunto agora; será que “12 Anos de Escravidão” satisfaz (em termos históricos), mr. Lee”? Espero que sim, pois o filme de Steve McQueen é um retrato tão cru, realista, triste e vergonhoso do que um ser humano é capaz de fazer com outro pelo simples fato de ter a cor da pele diferente. Enfim… que tenhamos mais filmes como esse, de denúncia e reflexão. Afinal, cinema não está aí só para entreter, mas para educar e nos fazer questionar a sociedade e o mundo em que vivemos.